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terça-feira, fevereiro 08, 2022

A matança do porco

O que vou contar aconteceu várias vezes, durante a minha infância e está gravado na minha memória em pensamentos, sons, cheiros e, finalmente, sabores.
Havia um dia em que eu acordava, de manhã bem cedo, com guinchos estridentes. Guinchos de cortar a respiração, de furar os tímpanos, guinchos de um ser que quer agarrar-se à vida, gritos cada vez mais ténues, cada vez menos estridentes, depois já só um sopro…
Prestando atenção, totalmente acordada apesar da madrugada, eu sentia uma enorme energia por todo o lado, uma grande azáfama nas duas casas (a nossa e a do meu avô, muito próximas), um sentido do dever, sim, mas também uma indisfarçável alegria, uma expectativa de prazer. De todos, mas sobretudo de quem, como eu, não iria fazer nada, iria apenas observar e usufruir.
Era a matança do porco, como vocês já devem ter entendido.
Quando o silêncio, enfim, se instalava, havia um cheiro adocicado de queimado, estavam a queimar com fogo a pelagem do bicho. E logo um cheiro a sangue e a carne crua. O dia era longo e terminava com uma grande jantarada das duas casas, mas ainda não era a refeição principal, que teria convidados. Neste dia ainda eram só as “papas de sarrabulho”, acompanhadas com o sangue solidificado e cozido, a que o meu avô acrescentava açúcar, o único que o fazia. As papas eram verdes, enverdecidas por algum legume, não me perguntem pormenores, só recordo as sensações. Creio que também havia rojões de redenho, uma coisa esquisita. E no dia seguinte, então sim, a rojoada, uma festa dos sentidos e da comunicação familiar, em que o matador, com as suas enormes facas, era o herói.
Até aquele primeiro momento, o porco tinha sido criado quase como animal de estimação, embora nos fossem contadas histórias exemplares de bebés que foram comidos pelos porcos, era preciso ter cuidado… era amigo, mas também inimigo, não como se fosse gente…
Era assim.
Era assim, quando o homem ia buscar o seu alimento à natureza, às coisas e aos bichos. Mas não passava pela cabeça de ninguém dar um nome ao porco.
E muito menos lhe dariam um nome de gente.

Graciete Nobre

quarta-feira, outubro 29, 2014

Antes quebrar que torcer. Antes abraçar que desistir






Aprendamos a mensagem que esta árvore nos ensina. Abraçando a paisagem, talvez amando o mundo que abarca com os seus ramos, de pé, ainda que fendida pelo meio, transformada em duas.


Quantas vezes não evitámos abraçar os outros, o mundo, no receio de sermos fendidos em duas, em dois?

Ao contrário desta árvore, cujos ramos se abrem e fecham, sistólicos, partidos, em forma de coração.


terça-feira, dezembro 31, 2013

A MISSA DO GALO (CONTO)


(Este conto será retirado do blogue, em breve. E será melhorado, também)


José Aparecido nunca tinha vindo a Portugal, mas conhecia o avô. Sobretudo de ouvir falar dele, claro. Sempre a dizerem que era um velho duro. E uma vez, o velho tinha mesmo ido a Champigny. Ficou por lá alguns dias, mas sempre a resmungar por tudo e por nada. Perdia-se nas ruas, era preciso ir procurá-lo… criticava tanto a casa da filha, uma vivenda grande e bem arranjada, que Aparecido se convenceu. A casa do velho deveria ser muito boa. E foi por isso que resolveu vir passar uns meses a Portugal, enquanto não se resolviam umas chatices que tinha tido, umas dívidas, umas zangas, uns ameaços… enfim, tudo para esquecer.
Afinal, a casa do velho era um pardieiro mais velho do que ele, quase a cair, com telhas que deixavam entrar água da chuva, à beira dum ribeiro, naquela aldeola onde o Judas perdeu as botas. Um frio de rachar e o velho não tinha outro aquecimento que não fosse a lareira. Só uma lareira para a casa toda, com  a lenha muito racionada porque era muito poupado. Avarento. Ainda por cima era ele, Aparecido, quem tinha de rachar os troncos das árvores e de carregar com as achas pelas escadas acima. Parecia mal dizer que não e mandar o velho fazer isso, claro.  Embora fosse um trabalho que o avô costumava fazer todos os dias, sem nunca se queixar. Velho rijo! Quem me dera ser assim quando tiver a idade dele, dizia a mãe, quando não se queixava da maneira como tinha sido tratada em pequena. Mas eram outros tempos, dizia ela, não se dava à canalha o mimo que se dá hoje em dia…
Aparecido já estava mais que farto daquela casa, daquela parvónia, da forretice do velho, dos raspanetes que estava sempre a apanhar. Ia-se embora, não estava para aturar aquilo, só ainda não tinha ido por a mãe lhe pedir que ficasse até ao Natal. Não deixes o teu avô sozinho na noite de Natal! Por isso, claro, sobretudo por isso, mas também porque lhe dava jeito ficar mais uns tempos, ia ficando… ia aturando aquilo, em troca de cama, mesa e roupa lavada, se a lavasse ele, claro.
Mas o pior era o galo.
Era um galo enorme, de penas compridas e avermelhadas, com uma crista enorme, como para se ver bem que não era uma galinha, bem, para quem sempre viveu na cidade, perto de Paris, na banlieue parisienne, não era assim tão fácil distinguir uma galo de uma galinha, mas parece que o animal já sabia disso e já tinha tratado de todos os pormenores, para que não houvesse engano possível. E andava sempre rodeado pelas galinhas, de dia. De noite, punha-se a cantar, a cantar, até lhe parecia a ele, Aparecido, que o bicho estava empoleirado nos ferros da cama velha e desengonçada, ali mesmo ao pé. Uma cama que também gingava e gemia, num ruído de metais raspados uns contra os outros, de todas as vezes que o rapaz dava voltas na cama. E não eram poucas.
-Ó avô, então os galos não cantam só quando o sol nasce?
- Pois, antigamente era assim, por isso é que os antigos diziam que os galos só cantam quando nasce o sol.
- Então e até isso já mudou? Os galos também são modernos?
- Ó meu filho, isto agora está tudo diferente…
- Mas o sol não nasce à mesma hora, como antigamente?
- Sim, claro, isso, se mudou, terá sido muito pouco. Pelo memos desde que eu me lembro, e olha que eu tenho uma memória! Até me lembro melhor das coisas antigas do que das novas...
- Mas o galo está sempre a cantar, canta toda a noite! Quando eu estou quase a adormecer, desata aos berros, parece que está encostado às minhas orelhas e que o estão a matar! Passado um bocado estou a dormir, começa a cantar outra vez. Raio de vida. E de terra!
- A culpa não é dele. É que às vezes passam ali adiante na estrada umas motorizadas dos rapazes que foram à vila, vão lá para andarem no laró, agora anda tudo no laró, que não lhes custa a ganhar o sustento. Eu, no meu tempo…
- Ó homem, mas o que é que isso tem a ver com o galo? Que mania que você tem de estar sempre a mudar de conversa…
-  Cala-te e deixa-me acabar. No meu tempo começávamos a trabalhar mal o sol nascia, desapegávamos quando o sol se começava a por, éramos como o galo, guiávamo-nos pelo sol, trabalhávamos de sol a sol. E para ganharmos uma côdea de pão. Escola? Escola era um pau de marmeleiro pelas costas abaixo se não trabalhássemos como devia de ser. Anestesia para tirar os dentes? Anestesia era outro pau de marmeleiro pelas costas a baixo se não estivéssemos quietos e calados enquanto o meu pai me arrancava o dente com um alicate.
- Credo! Ó velho, você também não exagere. Quando você se põe a inventar...
- Inventar, eu?! Ai era assim, era, tu que pensas? Pensas que era como agora, tudo no bem bom, a canalha a estudar ou a fazer que estuda até ter idade  quase para a reforma… ninguém faz nada, ninguém quer trabalhar, olha para ti!
- Deixe lá isso. Não me fale em mim!
- Ai deixo lá isso? Ai não queres que te fale em ti? Então e tu achas normal viver à custa do teu pai, que também foi um mouro de trabalho, coitado, na França, e agora, ainda por cima, a viver à custa do teu avô, com a idade que tens? 30 anos? Com trinta anos já eu tinha...
- Pois está bem, mas você já me disse isso tantas vezes. Não vale a pena bater mais no ceguinho.
- Ceguinho? Não vale a pena, mas é malhar ferro frio, que tu mais pareces um ferro frio, uma parede de…
- Ó velho, pare lá com essa conversa que essa merda já me está a chatear.
- Cala-te tu. Ou agora também queres mandar calar os velhos? Também era só o que faltava!
- Não é nada disso. Deixe lá, pronto, não se zangue.
- Pronto…
E já agora explique-me lá isso do estafermo do galo, que eu ainda não entendi. Não entendo por que canta o galo a todas as horas e não como os outros de antigamente. *
- Mas eu já te disse. Os rapazes das motas... e às vezes algum carro, sobretudo aos fins de semana, passam na estada da vila.
- Pois, eu isso percebi.
- Porque a mocidade agora não faz nada e passa a noite inteira no laró...
- Pois, eu isso também já entendi. Porra para o velho!
- Ó Apracido, tu vê lá como falas. Olha que eu não sou surdo!
- Então está sempre a dizer que ouve mal e quando eu digo estas coisas em voz baixa, cá com Deus e comigo…
- Eu só ouço mal o que não me interessa!
- Pronto! E então ia a dizer … passam as motas, ou os carros…
- De noite. E ao virar da curva, as luzes iluminam aqui esta parte ao pé do castanheiro grande, estás a ver, ali onde está o galo, na capoeira. Percebes? Ele pensa que é o sol e pronto, começa logo a cantar! Os bichinhos têm sempre razão. Nós é que muitas vezes não a temos.
E assim se foram deitar, cada um para o seu quarto, muito cedo para não gastarem luz, como dizia o velho. Embrulhados nos cobertores e nas mantas que pesavam como pedras, na opinião do neto, e frias, que nunca tinha visto nada assim. Lá em França os cobertores são leves e quentes. Mas o velho queixava-se muito quando lá estava. Queixava-se do frio, queixava-se da comida e de tudo. E lá nem há mantas, para que servem estas mantas desta terra, pesadíssimas e geladas? Ainda a mãe dizia que queria regressar? Nem ela se daria já aqui... dizia que queria vir, que queria vir, mas nunca vinha, devia estar à espera que o velho morresse... para herdar... e para o não aturar, claro. Quem é que podia  aturar semelhante criatura? E viver naquela terra atrasada? A mãe até dizia que em Portugal não havia frigoríficos, ela chamava-lhes frigideiras, nem mulas, ela queria dizer moules, ou seja, formas para bolos, a  não ser que quisesse dizer mexilhões, que também se diz assim em francês... mas ele bem os tinha visto no Porto: frigoríficos, formas de bolos e mexilhões. Não havia nada disso naquela terra, claro. E se calhar no tempo da mãe não havia em lado nenhum, mas não... haver havia, ela é que era um bocado ignorante, mais do que um bocado, uma palerma, nem falava bem o francês nem o português, era como dizia  a professora de português lá em Champigny:
- Os vossos pais são uns ignorantes, não sabem nada, também não admira, vieram das aldeias da serra para Paris.... nem sabem falar português, nem francês, nem sabem coisa nenhuma.
Assim pensava o jovem, enquanto se aproximava perigosamente a noite de Natal, com a famosa ceia, muito recomendada e muito enfatizada pela mãe.
Nessa noite, Aparecido e o avô comeram o mesmo que em todas os outros jantares, a que o velho chamava ceias. Batatas cozidas com bacalhau e couves. Às vezes até eram só batatas e couves, outras vezes era só caldo e pão...
As batatas eram mais brancas e mais perfeitas que o habitual, a duas postas de bacalhau eram mais grossas e melhores, mais amarelas, as couves eram iguais, idas buscar ao quintal poucos minutos antes de entrarem na panela. O vinho também era a mesma zurrapa de verde tinto de sempre, produzida nos mesmos quintais, de umas videiras velhas e grossas, mas nessa noite era do engarrafado, o da melhor colheita. E o azeite... imagine-se, dizia o avô que aquele azeite era especial, até abriu uma garrafa de propósito, fez um relambório sobre o assunto, contou uma história complicada em que misturava o azeite com os tempos em que era jovem e com a falecida mulher... o neto não prestou atenção a coisa nenhuma, imagine-se, quem é que se importa com o azeite! Sobremesa, uns doces feitos de pão frito com açúcar, que não prestavam para nada, parecidos com os que a mãe fazia em França, mas ainda piores. Enfim, sempre era melhor do que nos outros dias, em que não havia sobremesa nenhuma... a não ser às vezes umas uvas no tempo das uvas, um punhado de castanhas no tempo das castanhas...
As batatas, o bacalhau e as couves cozeram lentamente na panela de ferro da lareira, enquanto os dois aqueciam os pés ao fogo, naquele dia gelado. Para o rapaz, habituado a não fazer nada, o aborrecido daquela vida nunca era a falta de atividade, pelo que ali ficou sossegado, a ouvir a chuva cair no telhado baixo e o vento a zunir no velho castanheiro. Para o velho, aquela era a única vida que conhecia e não desejava, nunca tinha desejado outra.
Comeram sossegados e foram cedo para a cama. Nada de presentes, nada de decorações de Natal, nada de rezas. O rapaz não tinha religião praticamente nenhuma, a do velho era mais superstição do que fé, nisso e noutros aspetos eram parecidos, como muitas vezes acontece com elementos de diferentes gerações de uma mesma família, mesmo se nunca houve muito contacto entre eles.
A princípio, o rapaz acendeu uma vela de cera, para o avô não protestar por ele gastar “luz”, referindo-se à eletricidade. Tentou ler uma velha revista que lhe deram durante a viagem de comboio, mas não era grande leitor e acabou por adormecer com a revista por cima da cara. Minutos depois, acordou com o galo.
- Có có-ró có-có!!!! – cantou o galo.
Acordando estremunhado, Aparecido atirou com a revista para o chão, levantou-se de vela na mão e foi discutir com o avô,
- Eu vou-me mas é embora desta terra de merda!
- Vai vai! Até já devias ter ido. Andas aqui a comer à minha custa e ainda reclamas!
.- Já quantas vezes me disse você que eu ando a comer à sua custa? Então eu não sou seu neto? Eu não sou o seu herdeiro? E não é costume as visitas comerem à custa de quem as recebe?
- Visita, tu?  Que grande visita, que tu me saíste, que já cá estás a comer há meses sem fazer nada. Herdeiro? Se eu te deixasse gastar tudo o que tu queres gastar, não ia haver nada para herdar, herança nenhuma, nem para ti, nem para a tua mãe, nem para o teu pai. Vai-te mas é deitar e deixa-me dormir a mim. Estamos no Natal, deixa-me ao menos em paz, no Natal!
O rapaz lá voltou para a sua cama de ferro, que rangia ainda mais que o habitual, por baixo do duro e áspero colchão de palha de centeio. Mas ficou inquieto, na tempestade que desabava a espaços, seguida de períodos de acalmia. Inquieto e remexendo-se constantemente, lá voltou a adormecer.
- Có có-ró có-ri có-ró!!!!
- Ai, que é isto? – pergunta Aparecido, despertando de repente, sem se lembrar já de onde estava e julgando-se em Champigny, onde não há galos a cantar durante  a noite. Acordado, acende a vela e lá fica a cismar nisto e naquilo, em velhos rancores contra o avô, contra o pai, contra aqueles conhecidos que o andavam sempre a importunar lá por França... mas a fraca luz do aposento, um raro luar filtrado pelas nuvens, que entra pela janela e o completo silêncio que se gerou após a tempestade faziam-no adormecer em pouco tempo. E assim ficou a dormir no melhor do seu sono, naquela invulgar noite de Natal. Quando de repente se ouve, como já setinha ouvido antes, tantas vezes...
- Có có-rí có-có ri-có!!!!
O quê? - Levanta-se o rapaz, desta vez acendendo a luz elétrica, corre desnorteado para a sala, acende a luz elétrica da sala, investe para cozinha, acende a luz elétrica da cozinha, nunca se viu tanta luz ao mesmo tempo naquela casa, o que faz o avô acordar atordoado.
- Que é isto, rapaz?!
- Porra! Eu é que já não aguento mais isto! Vou matar o galo - vocifera Aparecido, enquanto procura atabalhoadamente, nas gavetas e nos armários da cozinha,  a melhor faca, aquela que corta bem
- Onde é que você meteu a faca que corta bem? Amanhã temos arroz de galo.
- O velho levanta-se da cama, amparado na bengala, um pouco atordoado com toda aquela agitação que o despertou dum sono profundo, feliz e sem sonhos. Irritado, dirige-se à cozinha, gritando com o neto, que vai atirando pelo ar pratos e talheres.
- Tu está-me quieto rapaz. Tu não vês que me estás a escaqueirar tudo? Mas o que é que tu queres, ó moço?
- Vou matar o galo. Ando à procura da faca que corta bem. Você só tem uma faca que corta bem, as outras não prestam! Onde é que a pôs agora?
- Tu não te atrevas a matar-me o meu galo! Tu estás-me a ouvir?
- Ai não, então já vai ver o que é que eu lhe faço!
- Está quieto, rapaz! O galo já aqui estava quando tu aqui chegaste e ainda cá há-de ficar muito tempo quando tu te fores embora!
- É já amanhã!
- E havia era de ser ainda ser hoje! De que é que tu estás à espera? Desaparece-me daqui!
- Desapareço desapareço, ai desapareço e é já - grita Aparecido - mas antes disso vou matar o galo. E ainda o havemos de comer antes de eu ir. Não o vai deitar fora depois de morto, pois não? Lá porque gosta tanto dele...
- E gosto
- Isso sei eu! Até gosta mais dele do que de mim!
- Muito mais. Eu gosto muito mais dele do que de ti, ouviste? Porque eu a ti nem te conheço. Sei lá se tu és meu neto!
- Ai não me quer dizer onde está a faca? Então eu mato-o mesmo à mão , torço-lhe o pescoço e acabou-se!
Dizendo isto, Aparecido sai porta fora em direção à sala, na intenção de ir ao pátio matar o galo. O avô corre a agarrá-lo com força. O velho é forte, mas o rapaz, magro e ágil, consegue libertar-se, estrebuchando. Logo o avô o agarra por um braço. Então, Aparecido pega, com a outra mão, numa cadeira que ali está, levanta-a no ar e fá-la desabar com toda a força sobre a cabeça do homem. Velha e desengonçada, a cadeira parte-se em bocados, pouco mais mossa fazendo na cabeça do velho do que a luz intensa a que não estava habituado lhe tinha feito nos olhos e no espírito.
Num gesto de defesa, o homem levanta a bengala e vai bater com ela na cabeça do neto, no momento em que este se volta para trás. Atingido na nuca, o rapaz cai ao chão, fulminado. Está morto.
Aturdido com o seu ato, a princípio, não querendo acreditar no que vê, o velho dá-se depois conta da sua atual situação. Com o sentido prático que adquiriu numa vida simples e solitária de trabalhador braçal, pouco tempo demora a entender tudo e  a conjeturar o que deve fazer. Veste o seu melhor fato, põe  a gravata e o chapéu, chama os vizinhos, conta o que fez e pede que o levem à vila, de mota, para se entregar à guarda, confessando o seu crime. Involuntário.
Pouco passa da meia noite. Da janela do posto da guarda em que ficou retido como prisioneiro, até se averiguarem os factos, o velho observa, desanimado, os seus conterrâneos que saem da igreja, felizes, depois de assistirem à Missa do Galo. As crianças saltitam alegres à frente dos pais, mortas por irem abrir os presentes que ficaram por debaixo da árvore, ou dentro dos sapatinhos, ao pé do presépio ou da cama. Os adultos estão também alegres e bem dispostos, digerindo ainda a lauta ceia de Natal com as suas desusadas sobremesas e bebidas.
Naquela terra em que nada acontece nunca, os que saem da igreja são logo abordados pelos outros, ávidos de lhes contarem a grandessíssima novidade. A excitação da inusitada notícia apaga, naquele momento, qualquer sentimento de piedade ou de indulgência. Todos olham para a janela da guarda com grande curiosidade e quase alegria, pela quebra da monotonia das suas vidas, ali tão isoladas do mundo. Não há maldade na sua atitude, antes o entusiasmo de quem vê acontecer na sua terra o que só vê habitualmente e até mesmo constantemente na televisão. Falam alto, chamam um pelos outros, no desejo de contar a grande novidade aos poucos que ainda não a ouviram, enquanto o cadáver de Aparecido é transportado para a morgue mais próxima, longe dali.
Pouco depois, tudo sossega. A terra cai na tranquilidade e na harmonia das pequenas terras sem história. Chegados a casa, pouco tempo demoram a deitar-se e a adormecer, cansados de tanta excitação. Alguns transeuntes foram para mais longe, nas suas motorizadas ou nos seus automóveis. Ao passarem  a curva da estrada, a luz dos faróis incide na capoeira que fica por detrás do castanheiro velho.
O galo canta.

Lisboa, 30 de Dezembro de 2013
Graciete Nobre

quinta-feira, novembro 28, 2013

A seda azul dos dias / A seda azul das noites



A noite vai descendo lentamente, muito lentamente
Sobre esta parte da terra antes do mar,
No centro do Ocidente do mundo (conhecido)

A dádiva do repouso acaricia finalmente
As nossas cabeças inclinadas, entregues à febre do tempo

Muitos nunca vão esquecer este dia que agora acaba em sombras,
Quase todos o olvidarão para sempre

A luz desaparece lentamente, muito lentamente...
Ouvem-se as vozes, diálogos familiares, falas tranquilas do dia que assim se extingue na cidade

Ouvem-se os sons da água que corre, invisíveis cascatas, ou fontes dos jardins escondidos e dos quintais ocultos
Ouve-se o som surdo das rodas dos automóveis, cada vez mais espaçado, mais lento, na cidade que repousa

Muitos dormem


E outros partem para a aventura da noite
Podemos descansar se quisermos, podemos partir se quisermos nesta cidade noctívaga

A lua cheia e a estrela do pastor aparecem agora, tranquilamente
Lembrando-nos a placidez dos campos, das terras longe, noutras paragens

Dizem-nos que nada mudou. E que tudo muda sempre?
Que nada mudou, dizem:
- Voltamos sempre aqui, mais ou menos a esta hora. Aqui e a toda a parte...
Dizem-nos que a luz há-de vir todos os dias e todas as noites
"Para ti" - quase parecem sussurrar




- SÃO MAIS OS MORTOS DO QUE OS VIVOS - ciciamos baixinho, como se ninguém nos escutasse,

Nas trevas que se adensam, medonhas, e para cá dos montes, já quase invisíveis


- São mais os vivos - parece tranquilizar-nos a luz obscura, a escuridão tenebrosa, a claridade ambígua do luar
- Porque todos foram vivos, um dia.
E todos tiveram medo da escuridão,
Como tu

Muitos dormem!


Graciete Nobre, Julho, 2010

domingo, outubro 23, 2011

Palhaço Rico

O palhaço rico atravessa a pista do circo ou o écran da televisão
(O que é agora a mesma coisa)
E confessa:

"Eu confesso!" "Não, eu não confesso!
Antes direi, por mim, a verdade relativa:
Perdi a virtude, a honestidade, a fé...
Quem as não perde?

Com este dinheiro que ganhei, pude comprar muitas coisas
E todos me admiram por eu ter muitas coisas

Sou rico! Sou um palhaço... Que importa?
Todos se riem de mim, mas todos me admiram, no fundo.

Tanto foi o que perdi, pobre de mim...
Ninguém me ama, todos me desprezam
Fiz aquilo que todos fazem, mas muito melhor:
Entre os palhaços ricos, há-os muito menos ricos do que eu...

Vejam estas coisas que eu tenho, eu tenho tantas coisas:
Anéis, jóias, carros, casas, barcos, jardins,
Tudo isto ganhei com o suor do meu rosto,
Com a vergonha da minha cara, que perdi.

Se é de ouro falso que tudo em mim rebrilha
Que importa?
Eu tenho muitas coisas, tenho tudo o que é preciso
E muito mais

Sonhar, já não sonho a não ser a dormir
Realizei todos os meus sonhos... essa é a parte chata da questão

O que posso desejar ainda, me perguntareis vós:
Ser mais rico e mais palhaço ainda
Fazer rir toda a gente e mostrar as minhas coisas

Fazer rir às gargalhadas, para sempre
E chorar por dentro...
(Os palhaços também choram, sabiam?)
Porque perderam a ilusão e o sonho,
Porque todas as coisas são demasiado coisas e envelhecem

E existirão todas elas depois de mim, pertencendo a outros
Eu, pobre palhaço rico, chorarei então por dentro e por fora,
Pois já nada me pertence:

Tudo o que eu sou, comprei.
Tudo o que poderia ter sido, vendi.
Tudo o  que não fui, o que poderia ter sido... esbanjei.


             Graciete Nobre, Lisboa, Fevereiro de 97

(Outubro de 2014: Escrevi este poema em 2011 e detesto-o. Mas não o apago, porque cada vez é mais verdadeiro.)

quinta-feira, abril 14, 2011

Todos os poemas são poemas de amor?

Esta pergunta ocupou a minha pobre cabeça durante vários anos. De facto, se eu escrevia um poema a outra pessoa, ou mesmo um texto bonito, ou uma carta que fizesse vagamente lembrar um poema, logo essa coisa era considerada uma declaração de amor, o que resultava numa situação embaraçosa. Sempre que escrevia bem, supunha-se que estava a declarar a alguém o meu amor. O que me fez desistir de escrever cartas bonitas. Ou, melhor, de as enviar.


Tudo ficou esclarecido, para mim, um dia.


Umas jovens contaram-me que uma delas tinha uma paixão assolapada por uma amigo, que não a deixava amar mais ninguém. Era muito gordinha, nenhuma beleza, o amigo namorava com outra. Um dia em que eu estava bem disposta, decidi abordar o assunto:
- Então você, ouvi dizer que tem uma paixão assolambada (termo meu) por um mocinho. É verdade?
De imediato a rapariga tirou do porta-moedas um papel muito dobrado, muito sujo, com as dobras a rasgar, de tanto ter sido aberto e lido e desdobrado e dobrado outra vez, e disse:
- Veja, ele escreveu-me um poema! Tenho-o aqui! Leia!


Li o papel e não consegui evitar um ataque de riso, que justifiquei depois muito bem... o melhor que soube enfim, mas que resultou.
O texto, muito simples e em prosa vulgar, cheia de erros, dizia apenas algo como isto: "Eu sou muito teu amigo, mas não te amo. Espero que tu encontres outro rapaz que goste muito de ti, porque tu mereces."


Foi o primeiro "poema" de não-amor que li. E mesmo assim, foi entendido como poema de amor.